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Afro-oportunismo e corrupção: candidatos mentem na autodeclaração

Atualizado: 23 de abr. de 2023

"Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer" (Conceição Evaristo)
Conceição Evaristo: romancista, poeta, contista e ex-professora. Foto: Brasil Escola

O uso das cotas raciais por candidatos nas eleições de 2022 foi cercado de má-fé e corrupção. Vamos trilhar neste artigo, como um país que tem a maior concentração preta/parda do mundo fora do continente africano foi palco de um afro-oportunismo por candidatos, os quais fizeram uso de uma ação afirmativa que tem como intuito facilitar o acesso aos espaços de poder para pessoas pretas, com objetivo de se eleger.


Em 1872, de acordo com o Censo, haviam 10 milhões de habitantes no Brasil. Deste total a população escravizada correspondia a 15,24%. As 10 milhões de pessoas estavam distribuídos em 21 províncias, segundo nos conta a Fundação Palmares. O recenseamento trouxe informações importantes, como a descrição dos povos originários por etnias, ocupação e dos portadores de deficiência física ou/e mental. Conta-nos a Fundação que:

"De acordo com o levantamento, 58% dos residentes no país se declaravam pardos ou pretos, contra 38% que se diziam brancos. Os estrangeiros somavam 3,8%, entre portugueses, alemães, africanos livres e franceses. Os indígenas perfaziam 4% do total dos habitantes."

O demógrafo Mario Rodart, coordenador do Núcleo de Pesquisa Histórica Econômica e Demográfica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e um dos responsáveis pela digitalização do Censo, relata que naquela época o país já pensava estratégias para acabar com a escravidão, por isso as políticas públicas eram todas no sentido de mapear quem estava vindo da Europa para um processo racista de branqueamento da população, a eugenia.


O termo "eugenia" foi criado pelo geógrafo Francis Galton, que era membro da elite britânica e primo de Charles Darwin. Em tradução livre "eugenia" significa "boa linhagem". Galton defendia que para que a sociedade londrina da época pudesse se livrar do alcoolismo, doenças e pessoas pobres, os nobres deveriam ter mais filhos ao passo que a "seleção natural" trataria de eliminar as raças menos perfeitas, ou seja, uma sociedade menos semita, menos cigana, menos negra.


Quadro "A Redenção de Cam" do pintor espanhol Modesto Brocos é um registro do "embranquecimento" como solução de melhoria para o povo brasileiro. Foto: Reprodução

O governo do Brasil fez seu esforço necessário para cumprir a cartilha racista e eugenista de Galton mas não o suficiente para apagar a memória e ancestralidade de milhões de brasileiros.


De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), somávamos 212,7 milhões de brasileiros em 2021. Nesse período, em comparação ao PNAD de 2012, o percentual de pessoas que se autodeclaram:

  1. Brancas caiu para 43%;

  2. Pretas subiu de para 9,1%;

  3. Pardas para 47%.


O relatório também mostrou que:

  • O Nordeste tem a maior proporção de pessoas autodeclaradas pretas, com 11,4%. O estados como a Bahia (21,5%) e o Rio de Janeiro (14,2%) são os que mais têm concentração de pessoas pretas desbancando o Pará e Amazonas que apareciam em pesquisas anteriores.

  • Os pardos estão mais presentes no Norte (73,4%), Nordeste (63,1%) e Centro-Oeste (55,8%)

  • A maior concentração de autodeclarados brancos se localizam mais no Sul (75,1%) e Sudeste (50,7%).


A análise com o recorte de cor/raça mostra que partiram mais votos para a eleição de Luis Inácio Lula da Silva justamente nas regiões com maior percentual de autodeclaração de pretos e pardos (exceto o Rio de Janeiro, localizado no Sudeste do Brasil) que contabilizou em sua maioria votos nas regiões Nordeste e alguns estados do Norte do país. Isso não significa, entretanto, que negros e pardos dessas regiões votaram em Lula, mas que pode ser um grande indicativo que a escolha por um governo progressista e de um Estado mais garantista tenha sido um elemento decisivo no pleito deste ano na escolha do Presidente eleito.


A corrupção começa ainda na candidatura


A corrupção é definida como "formas desonestas ou crimes praticados por uma pessoa ou organização em uma posição de autoridade para obter benefícios ilícitos ou abuso de poder para ganho pessoal". É também uma chaga aberta que desestimula a credibilidade nas instituições e torna ainda mais árdua a crença do povo em uma mudança positiva para o nosso país.


Se o Brasil do século XIX procurou esconder seu passado escravagista através da tentativa de embranquecimento da população, nesta eleição para se beneficiar do Fundo Eleitoral partidos políticos conseguiram inovar na corrupção antes mesmo de eleger seus candidatos.


Um dos casos que mais ganhou destaque da mídia e nas redes sociais foi o então candidato ACM Neto (União Brasil) e sua vice Ana Coelho, que concorriam ao pleito no governo do estado da Bahia, que se autodeclararam negros.

Memes com a Hashtags #ACMNegão dominaram as redes sociais. Reprodução

As redes sociais e seus concorrentes na disputa não perdoaram a corrupção de ACM e ele foi alvo de inúmeros memes. As pesquisas de voto indicaram que ACM perdeu 5 pontos, e foi derrotado por Jerônimo Rodrigues (PT) com 52% dos votos, contra seus 47%.


Ana Coelho e ACM Neto. Ambos se autodeclararam pretos. Ana Coelho voltou atrás após repercussão. Foto: Panorama da Bahia




As críticas à ACM Neto não pararam por aí, sua família os Magalhães são conhecidos em todo o estado, sobretudo por que são originários da aristocracia política baiana, herdeiro do maior legado do coronelismo na região, um dos 50 candidatos a governador mais ricos do Brasil, com patrimônio declarado de R$ 41,7 milhões e defensor de ideais conservadores, era um dos defensores da reeleição de Bolsonaro ao pleito de 2022.


Mas não foi apenas ACM Neto que mudou sua autodeclaração, a lista de candidatos candidatos que em eleições anteriores que se declararam brancos e na eleição de 2022 se declararam pardos é extensa e traz vergonha.


Dos 517 parlamentares nas eleições deste ano que se declararam negros para o cargo de senador, deputado estadual e federal, apenas 263 deles foram de fato considerados negros pela banca de heteroidentificação racial contratada pela equipe de jornalismo do site UOL, sob a liderança da doutora em sociologia pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) Marcilene Garcia de Souza. Sendo divididos em:

  • Deputados federais: dos 135 autodeclarados, somente 66 foram considerados pela banca;

  • Deputados estaduais: dos 376 autodeclarados, somente 192 foram considerados pela banca;

  • Senadores: dos 6 autodeclarados, somente 5 foram considerados pela banca;


A lista dos candidatos eleitos que se autodeclararam negros ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE):


Deputados federais eleitos em 2022 que se autodeclararam negros ao TSE: Alexandre Leite (União Brasil-SP); Andreia Siqueira (MDB-Pará), Antônia Lucia (Republicanos-AC), Arthur Lira (PP-AL), Dimas Gadelha (PT-RJ), Duarte (PSB-MA), Júnior Mano (PL-CE), Sérgio Brito (PSD-BA), Silvye Alves (União Brasil-GO) e Wellington Roberto (PL-PB). Foto: Site Uol

O TSE questionado afirmou que caberá à Justiça Eleitoral punir as irregularidades dos candidatos, e que a análise sobre a correta destinação dos recursos para candidaturas de pessoas negras é feita no momento da prestação de contas das campanhas.


Em um país em que há uma sub-representação da população preta nos espaços de poder e decisão, alguns já conseguiram identificar uma forma de se beneficiar das oportunidades e brechas legais. É vergonhoso que hajam partidos e candidatos que façam uso de uma ação afirmativa que visa à reparação de séculos de exclusão e violência com a camada preta da população brasileira para se eleger, e muitas vezes votar em pautas que exclui ainda mais esta população. Cabe a nós, sociedade civil, vigiar e cobrar aos órgãos públicos a punição e cancelamento deste afro-oportunismo covarde.



Texto escrito por Katiane Bispo

Katiane Bispo é formada em Relações Internacionais, especialista em Políticas Públicas e Projetos Sociais. É podcaster no “O Historiante”, colunista no jornal “Zero Águia” e ativista em causas ligadas a Direitos Humanos. Instagram: @uma_internacionalista.

 

BIBLIOGRAFIA










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