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Escravidão contemporânea: a coisificação de pessoas ao longo de um dia que não acaba

"O 14 de maio de 1888 apresenta-se como o dia mais longo da história do Brasil."

A frase do professor Hélio Santos é uma crítica ao período seguinte à Lei Áurea, que sancionou formalmente o fim de 354 anos de escravidão no país, para muitos a mais duradoura do mundo. A abolição assinada pela princesa Isabel não foi sucedida por políticas públicas integrativas que visassem à eliminação progressiva de violações dos direitos humanos e de desigualdades socioeconômicas, as quais se consolidaram como aspectos constitutivos da sociedade brasileira e, de maneira estrutural, relegam parte importante da população, ainda hoje, ao estado de coisa.


Os casos recentes de escravidão contemporânea, nas vinícolas de Bento Gonçalves/RS e na montagem do festival Lollapalooza em São Paulo/SP, revelam que a ausência de salvaguardas capazes de regular relações de trabalho equânimes e de garantir cidadania efetiva para todas as pessoas faz com que o 14 de maio de 1888 possa ser entendido como "o dia que não acabou".


A constituição da sociedade e da economia ocorreu de maneira bastante heterogênea no Brasil. O modelo colonial, baseado na grande propriedade e no regime escravista, gerou cisões que fragmentaram o país racial e socialmente, bem como geográfica e economicamente. O acesso restrito à cidadania e a instâncias de poder político, condicionado por critérios de renda e de letramento, gerou discrepâncias em meio a uma população composta, primordialmente, por pessoas pobres, analfabetas, pretas e mestiças, distribuídas pelo vasto território.


Havia certa esperança de que a extensão da educação, a participação política em massa e a ampliação de oportunidades econômicas fossem prioridades após a Lei Áurea. Não obstante, como constatou o sociólogo Florestan Fernandes, a preocupação com o destino do indivíduo escravizado existiu enquanto se ligou a ele o futuro da economia brasileira.


Com a Abolição pura e simples e com a transição em curso para o regime de trabalho livre, a atenção dos senhores se volta para seus próprios interesses diante do desafio de inserção do Brasil em uma nova ordem econômica internacional. Por conseguinte, a posição da pessoa liberta no sistema de trabalho, assim como sua integração à dinâmica social, deixa de ser matéria política, perpetuando, portanto, a reprodução do ciclo de coisificação de seres humanos por meio da escravização.


A Escravidão Contemporânea


Na legislação nacional, o artigo 149 do Código Penal estabelece que trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes e restrição de locomoção, seja por dívida contraída, por vigilância ostensiva, por apreensão de documentos ou objetos pessoais, bem como por cerceamento do uso de meio de transporte, são elementos que configuram, contemporaneamente, a escravidão.


No âmbito internacional, o Estado brasileiro se comprometeu com o combate à prática de coisificar pessoas quando tomou parte em diversos dispositivos, como a Convenção das Nações Unidas sobre Escravatura de 1926, o Pacto de São José da Costa Rica de 1969, as resoluções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho, entre outros. Além disso, o Brasil é signatário de compromissos, como, por exemplo, a Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano de 1972, que celebram o direito à livre escolha de emprego, a condições justas e a modo de vida satisfatório em ambiente que conceda ao indivíduo dignidade e bem-estar.


Apesar de a consolidação do conceito de trabalho escravo contemporâneo no ordenamento jurídico brasileiro representar fundamental avanço na luta contra essa forma de exploração, estatísticas indicam crescimento na ocorrência de casos.


Apenas no ano passado, 2.575 pessoas foram resgatadas de relações laborais análogas à escravidão em 23 das 27 unidades federativas pelo país. Um aumento de 31% no número de vítimas em relação a 2021. Conforme os dados do Ministério do Trabalho e Emprego, isso perfaz um total de 60.251 trabalhadores libertados desse contexto desde a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) em 1995. Esse grupo faz parte da Divisão para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE) da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) e, em 2016, foi reconhecido pelas Nações Unidas como ferramenta fundamental no esforço atual de suprimir a coisificação de indivíduos.


As ações do GEFM são resultado de articulação interinstitucional e têm como objetivo o reconhecimento do resgatado como sujeito detentor de direitos. Para isso, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel viabiliza rescisão de contratos, reparação dos danos trabalhistas por meio do pagamento de verbas rescisórias, seguro-desemprego, retorno ao local de origem, caso alguém tenha sido também vítima de tráfico humano, e encaminhamento para assistência social.



Atualmente, de acordo com o estudo feito pelo sociólogo José de Souza Martins, a pessoa escravizada no Brasil é, geralmente, jovem, do sexo masculino, oriunda da região do Nordeste, com baixo grau de escolaridade e autodeclarada preta ou parda. Durante a entressafra da agricultura familiar, em busca de recursos para superação da escassez, esses indivíduos acabam sendo aliciados por empresas terceirizadas, não raramente por meio de ardil e de ocultamento de artifícios de endividamento, para atividades temporárias, como colheita de frutas, reflorestamento e confecção de roupas.


O DETRAE divulga, semestralmente, a lista com empregadores flagrados submetendo trabalhadores à situação análoga como a de escravizado. Ainda segundo Martins, em um mundo em que o trabalho tem sido sistematicamente desvalorizado, a terceirização não é somente um catalisador da escravização, mas um meio de institucionalizá-la. De acordo com as informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada no último trimestre de 2022 e apurada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 40 milhões de indivíduos estão na informalidade, em grande medida vulneráveis à exploração e à lógica que transforma pessoas em coisas.


Trabalho e Dignidade


Além de reflexão mais aprofundada sobre a precarização das relações de trabalho, o enfrentamento da escravidão contemporânea está diretamente associado à implementação de medidas inclusivas que concedam à população afetada pela herança do regime escravista acesso à educação, à habitação, à saúde, à cidadania e, finalmente, à experiência plena de liberdade e de humanidade.


A historiadora Carla Menegat, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU), afirma que o Brasil não elaborou um pós-emancipação que realmente construísse a percepção (e o fato) de que os libertos em maio de 1888 eram cidadãos brasileiros com plenos direitos. Embora esse desafio seja global, já que a escravidão ocorre em todas as regiões do mundo, é imprescindível que o Brasil busque soluções originais a fim de sanar esse problema que tem complexidades ligadas às idiossincrasias do processo de formação socioeconômica do Estado brasileiro, expressivamente caracterizada pelo déficit de representatividade que a concentração de riqueza e de poder legou.


Como inspiração na luta pela erradicação do trabalho escravo em território nacional, existe a figura de Pureza Lopes Loiola. Uma mãe que foi, desde o Maranhão até o Pará, em busca de seu filho aliciado e escravizado. As denúncias e os registros feitos por Dona Pureza, a partir de 1993, concorreram para a criação do GEFM e seus esforços foram reconhecidos internacionalmente, tendo sido homenageada, em 1997, com o Prêmio Anti-escravidão, oferecido pela organização não governamental britânica Anti-Slavery International, a mais antiga organização abolicionista em atividade.


A trajetória da maranhense que virou símbolo do empenho contra a escravidão contemporânea foi retratada no filme Pureza, dirigido por Renato Barbieri, lançado em 2022. Nesse sentido, é urgente que as discussões sobre as relações de trabalho ganhem os holofotes e incluam os diversos setores da sociedade brasileira que, historicamente, foram afastados do debate público e dos processos decisórios que há muito têm determinado, à revelia, seu destino como coisas. Assim como canta o rapper Emicida, é tudo pra ontem.

Afinal, o dia 14 de maio de 1888 precisa acabar.

Texto escrito por Eduardo Augusto

Formado em Relações Internacionais, gosta de pensar sobre o lugar do Brasil no mundo, e tem vivo interesse por tudo que possa (re)formar a essência e a estética da identidade nacional.

Revisão por Mateus Santana

Edição por Eliézer Fernandes



Quer saber mais sobre esse tema? Nosso parceiro o podcast Historiante tem um episódio recente sobre Escravidão Contemporânea, escute aqui!

 

Fontes


Hélio Santos – Participação no programa Provocações da TV Cultura (2014) https://www.youtube.com/watch?v=qfouVRsqLQ4


Florestan Fernandes – A integração do negro na sociedade de classes (1964)


José de Souza Martins – O cativeiro da terra (2010)


Dados de pessoas resgatas de situações análogas à escravidão https://sit.trabalho.gov.br/radar/







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