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Nomadland: A vida em movimento

Atualizado: 25 de abr. de 2023

Após perder o emprego e o marido em questão de meses, Fern, uma senhora na casa dos 60 anos, reúne seus poucos pertences numa van e parte rumo à exploração de um novo futuro possível. Fora da lógica dominante na sociedade, ela se transforma numa nômade moderna. Esta é uma introdução breve para o filme Nomadland de 2020, estrelado pela consagrada atriz Frances McDormand, roteirizado e dirigido pela premiada diretora chinesa Chloé Zhao, radicada nos Estados Unidos.

Cartaz do filme Nomadland, mostrando a atriz Frances McDormand, segurando um lampião.

A partir de uma construção propositalmente delicada e artística, Chloé Zhao apresenta Nomadland. Uma produção repleta de sutilezas e atenção aos detalhes, sem grandes diálogos ou explicações, além de fugir de uma trama mais tradicional, com início, meio e fim. A estrela Frances McDormand faz de Fern talvez a mais complexa, e ainda assim menos óbvia, de todas as personagens que interpretou ao longo de uma brilhante carreira de quase quarenta anos.

Nomadland é um filme muito premiado, sendo que a diretora Chloé Zhao se tornou a segunda mulher (e a primeira asiática) a ganhar a categoria de melhor direção no Oscar, enquanto Frances McDormand se tornou a primeira pessoa a ganhar o Oscar tanto como produtora quanto como atriz pelo mesmo filme.

Quase todo o elenco do filme era composto por pessoas "reais", ou seja, não eram atores profissionais. Linda May, Charlene Swankie e Bob Wells são nômades da vida real que interpretam versões fictícias de si mesmos. Frances McDormand se integrou tão bem na comunidade nômade que a empresa Target lhe ofereceu um formulário de emprego. Sua experiência de morar em uma van levou de quatro a cinco meses, cobrindo sete estados americanos. Ela adotou um estilo de vida nômade para fazer o filme parecer mais autêntico, em vez de apenas atuar nas cenas.

Muitos dos colegas de tela de Frances McDormand, como Charlene Swankie e Bob Wells, não tinham ideia de que ela era uma estrela de Hollywood. Bob ainda não sabia disso até filmarem uma cena emocionante na qual Fern se lembra de seu falecido marido, Bo. Depois da gravação, Bob buscou Frances em particular para lhe confortar por contar a história do marido e que tudo ficaria bem. Frances então revelou que o nome de seu marido era na verdade Joel Coen e ele ainda estava vivo. Bob ficou muito surpreso ao saber que Frances era de fato uma atriz.


O início da jornada


Inicialmente o filme apresenta a cidade de Empire em Nevada nos Estados Unidos. De fato, este é um lugar real que praticamente pertencia à US Gypsum, uma empresa americana que fabrica materiais de construção, principalmente drywall e joint compound. Em janeiro de 2011, a US Gypsum fechou sua mina de gipsita (ou pedra de gesso) como fruto da crise imobiliária de 2008 e, posteriormente, a cidade com ela. Os residentes com filhos puderam continuar nas casas pertencentes à companhia até junho de 2011, devido ao fim do ano escolar. O código postal foi descontinuado mais tarde visto que Empire se tornou uma cidade fantasma. Há uma questão fundamental no centro de Nomadland: o quanto o personagem da Fern está nesse estado por ser a única condição que lhe resta ou até que ponto há um fator de escolha envolvido? Até que ponto a Fern estava numa jornada de autoconhecimento e descobertas? Uma cena impressionante do filme apresenta uma criança perguntando a Fern se de fato ela é uma sem-teto e ela responde: "No, I'm not homeless. I'm just houseless". Numa tradução livre, homeless seria sem teto e houseless seria sem-abrigo ou sem casa. Buscando uma interpretação mais aprofundada, vemos que o significado é que a Fern se entende como possuidora de um lar dentro do senso de comunidade com seus amigos nômades, apesar de não possuir mais um abrigo tradicional de tijolos, telhas, madeira e vidro. Viver dentro de um carro ou algo similar, viajando o mundo com destino incerto e buscando a sobrevivência por meios de trabalhos temporários parece atraente para você? Talvez a resposta possa ser um sonoro "sim!", tendo em mente todos os mecanismos societários que o prende em um local e rotina totalmente fixos e o desejo de uma vivência mais aventureira, quebrando o padrão das regras mais usuais. Entretanto, você já parou para pensar o que é significa ser um nômade?


O que é ser nômade?

Aqui precisamos introduzir alguns conceitos e deixar algumas ideias a serem desenvolvidas: nomadismo versus sedentarismo e como nômades, migrantes e refugiados fazem parte de um movimento complexo e interconectado na sociedade.


Ilustração de nômades pré-históricos.

Como cita Yuval Noah Harari no seu best seller "Sapiens: Uma breve história da humanidade", durante mais de 2 milhões de anos, os humanos se alimentaram coletando plantas e caçando animais que viviam e procriavam sem sua intervenção. Por que fazer outra coisa se seu estilo de vida fornece alimento abundante e sustenta um mundo repleto de estruturas sociais, crenças religiosas e dinâmica política? Tudo isso mudou há cerca de 10 mil anos, quando os homens começaram a dedicar quase todo seu tempo e esforço a manipular a vida de algumas espécies de plantas e de animais. Do amanhecer ao entardecer, os humanos espalhavam sementes, aguavam plantas, arrancavam ervas daninhas do solo e conduziam animais a pastos escolhidos. Este trabalho, pensavam, forneceria mais frutas, grãos e carne. Foi uma revolução na maneira como os humanos viviam: a revolução agrícola. Os caçadores-coletores começaram ao alterar seu estilo de vida nômade, que implica a falta de uma habitação fixa numa região para um estilo de vida sedentário (não confunda apenas com falta de exercício físico!). Ou seja, os grupos sociais precisavam se fixar em algum local para cuidar de suas plantas e animais domesticados.

Com o passar do tempo, a sedentarização se tornou uma regra, fazendo com que os grupos sociais se estabelecessem em certas regiões indo até o desenvolvimento do conceito de fronteiras e Estados nacionais. Mas é claro que a vida nômade, movimentos de migração e refúgio também fazem parte da história humana em vários aspectos e com diferentes intensidades. Se faz necessário mapear diferentes mecanismos de produção de subjetividade em espaços de errância (dos errantes que vivem e andam sem destino) e de fixação, entre nômades, refugiados e migrantes. Os diferentes tipos de migração podem ser compreendidos em uma escala gradual, do nomadismo ao sedentarismo. O que distingue um do outro não é apenas o movimento, mas o modo como cada um se relaciona com o espaço: enquanto o nômade se distribui sobre o território sem um percurso definido, o sedentário distribui o território em pontos fixos, e o migrante se desloca entre um ponto de partida e outro de chegada, com um roteiro determinado. O refugiado é um migrante temporariamente sedentarizado, não totalmente integrado à terra onde reside.


Fluxos Migratórios

A história da própria Europa demonstra o quanto ela foi e é constituída por fluxos migratórios, internos e externos. Desde o século XVI, a migração laboral configurou os territórios simultaneamente à formação dos Estados nacionais. Os refugiados da época, a despeito de qualquer status jurídico, eram fugitivos de guerras e perseguições religiosas que buscavam um lugar onde pudessem ser acolhidos com sua identidade (judeus, protestantes, católicos ou muçulmanos). Outra grande onda migratória que atravessou a Europa ocorreu entre o fim do século XIX e a Segunda Guerra Mundial: a migração transatlântica deslocou milhões de europeus. Primeiramente por motivos econômicos (promessa de terra e trabalho no Novo Mundo), depois em razão da guerra. Nesse período, o refúgio político começou a ser confundir com a migração laboral. Segundo o manual do ACNUR (Agência da ONU para refugiados), temos alguns conceitos interessantes:

  • Refugiados são pessoas que escaparam de conflitos armados ou perseguições (principalmente políticas e religiosas) com risco iminente de morte.

  • Migrantes escolhem se deslocar principalmente para melhorar de vida, buscando melhores oportunidades de trabalho e educação.

  • A determinação da condição de refugiado não tem como efeito atribuir-lhe a qualidade de refugiado, mas sim constatar essa qualidade.

  • Uma pessoa não se torna refugiado porque é reconhecida como tal, mas é reconhecida como tal porque é um refugiado.

Embora migrantes e nômades não sejam, em termo conceituais, a mesma coisa, muitas vezes os migrantes acabam se nomadizando, sendo assim, as migrações estão sendo pensadas como um vetor de desterritorialização e de nomadização. As pessoas são movidas pelo desejo, que funciona na subjetividade de cada um como uma força motriz que o coloca em movimento, e capaz de enfrentar obstáculos, refazer caminhos, superar dor e sofrimento em torno do seu objetivo. A felicidade e novos horizontes estão lá, em algum lugar, a espera por eles. Isso significa que há uma perda das referências da identidade do sujeito perante o mundo, diante de sua comunidade e a si mesmo. Sendo assim, se produz neste processo um corpo híbrido, o migrante e o nômade se fundem e ao combinar tudo isso, os sujeitos operam em si um processo disruptivo com sua própria realidade. Os corpos híbridos, que incorporam o migrante e o nômade, desafiam o controle que o Estado exerce sobre os que estão sob o domínio do território o qual governa. O estado percebe a possibilidade de perda de controle sobre populações que se deslocam, pois necessita de populações sedentárias, ou seja, que tenham referências fixas de território, língua, identidade, que possam ser catalogadas e classificadas para o melhor exercício do biopoder. O biopoder é uma tecnologia de regulamentação que tem como objeto o corpo-espécie, a população e suas taxas estatísticas de doenças, nascimentos, etc. A partir de uma visão global, tem como intento criar análises e políticas em nível macro, considerando as taxas de normalidade para cada objeto específico observado. Em geral, uma complexa rede de instituições se mobiliza para a garantia assistencial e de controle dos imigrantes e refugiados. Há portanto, um movimento circular de tensões e distensionamento na relação entre estas populações, ou parte delas e o Estado. Há sempre o exercício do poder sobre os corpos, este biopoder se distribui em duas grandes linhas de ação: a biopolítica, que é o conjunto de prescrições sobre os modos de vida; e as disciplinas, o regramento que determina a permissividade sobre a ação dos corpos no mundo, em geral, dentro de certas organizações que têm esta premissa, as escolas, hospitais, abrigos, etc. As dificuldades em relação aos imigrantes e refugiados é um fenômeno global e afeta todos os países em diferentes níveis. Após a Segunda Guerra Mundial, diversas convenções internacionais foram estabelecidas para garantir que os direitos essenciais da pessoa humana sejam respeitados sem nenhum tipo de discriminação, ou seja, a afirmação do direito a toda pessoa ter o acesso a serviços de saúde, acolhimento, proteção, cuidado, independentemente da sua origem, nacionalidade ou qualquer outro elemento identitário. Enfim, apenas aplicar o rótulo de nômade, migrante ou refugiado a um grupo de pessoas é uma visão muito simplista e ingênua de uma relação mais intricada e complexa dos entes sociais e do Estado em diversos níveis.

Mais detalhes do filme:
Filme: Nomadland (Nomadland - Sobreviver na América)
Elenco: Frances McDormand (Fern), David Strathairn (Dave), Linda May (Linda)
Diretor: Chloé Zhao

Texto escrito por Gustavo Longo

Atuante na área da tecnologia há vinte anos, conciliador, curioso, disposto e apaixonado em sempre ajudar as pessoas, além de crente no poder transformador da Educação. Nas horas vagas, busca aprender sobre mercado de ações e em descobrir curiosidades do mundo do cinema através do canal Youtube Faro Frame. Acaba de iniciar um projeto pessoal com sua esposa para viajar e "viver" como um cidadão local em cada capital brasileira por 30 dias nos próximos anos.

 

Fontes: Sites: https://pt.wikipedia.org/wiki/Nomadland https://en.wikipedia.org/wiki/Nomadland_(film) https://www.imdb.com/title/tt9770150/?ref_=nv_sr_srsg_0 https://en.wikipedia.org/wiki/USG_Corporation https://pt.wikipedia.org/wiki/Empire_(Nevada) https://www.papodecinema.com.br/filmes/nomadland https://www.zeroaguia.com/post/refugiados-a-escolha-por-continuar-a-viver Artigos cientificos: Cuidado sem Fronteiras: o refúgio dos venezuelanos em Roraima e os dispositivos de governamentabilidade (Túlio Batista Franco) Nomadismo, migração, refúgio: itinerário em três movimentos (Beatriz de Barros Souza e Francisco Freitas) Livro: Título: Sapiens: Uma breve história da humanidade (Sapiens - A Brief History of Humankind) Autor: Yuval Noah Harari Editora: L&PM Editores ISBN: 978-85-254-3218-6


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