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Persépolis e a revolta das mulheres iranianas

“A revolução despertou [o Irã] de um longo sono de 2500 anos: primeiro, nossos próprios imperadores; depois, a invasão árabe pelo Oeste; em seguida, a invasão mongol

pelo Leste e, por fim, o imperialismo moderno”.



O Irã vive uma onda de protestos desde o mês de setembro de 2022, após a prisão e morte da garota curda Mahsa Amini, de 22 anos, pela polícia da moralidade, acusada de usar o véu islâmico de forma inadequada. Para entender melhor a intensidade dos protestos e a coragem das mulheres iranianas de enfrentar o governo dos aiatolás, resgata-se a obra Persépolis, uma História em Quadrinhos (HQ), de Marjane Satrapi.


Contexto geopolítico


O Irã, localizado na região do Golfo Pérsico, é um país estrategicamente muito relevante na política internacional, por ser um grande produtor de petróleo e por ter uma indústria armamentista expressiva. Alicerçado numa cultura de mais de 3 mil anos, hoje o país é governado com mãos de ferro pelos aiatolás, tendo sua autoridade máxima reconhecida pelo líder supremo Ali Khamenei. Profundamente policialesco, o Estado iraniano conta com vários braços armados, dentre eles está a Guarda Revolucionária do Irã, que responde diretamente ao líder supremo e tem o papel de manter a lei e a ordem.


Em uma foto disponibilizada por seu escritório em junho, o aiatolá Ali Khamenei foi fotografado em uma cerimônia em Teerã, posando ao lado de um quadro do seu antecessor, Ruhollah Khomeini. Foto:  NY Times.
Em uma foto disponibilizada por seu escritório em junho, o aiatolá Ali Khamenei foi fotografado em uma cerimônia em Teerã, posando ao lado de um quadro do seu antecessor, Ruhollah Khomeini. Foto: NY Times.

É justamente contra essa força estatal que milhares de manifestantes têm ocupado as ruas de diversas regiões do Irã em protestos contra a perseguição às mulheres, acusando-as de usar inadequadamente o véu islâmico. Essa questão não é nova para a sociedade iraniana, pois, historicamente, a nação viveu momentos de maior abertura em relação aos costumes e ao rigor da aplicação da xaria Lei Islâmica. Já na atualidade, a sociedade convive com um grande arrefecimento da vigilância e punição aos que não seguem a ortodoxia.


Persepolis


Nesse viés, em Persépolis, Marjane Satrapi conta parte de sua história pessoal aos seus amigos franceses. Nascida em 1969, Satrapi tinha apenas 10 anos de idade quando a revolução iraniana aconteceu em 1979 que se deu contra o Xá, aliado dos Estados Unidos. Apesar de promover aberturas sociais como o uso de biquini nas praias, a revolução foi se tornando muito impopular ao longo dos anos, de modo que se tornou uma ditadura fundamentalista.


A primeira página de Persépolis já traz como título “O véu”, em que a narradora personagem descreve o impacto da revolução nos costumes de uma estudante primária no Irã em 1980 e relata que:


Em 1979 aconteceu uma revolução que depois foi chamada de “Revolução Islâmica”. Então veio 1980: o primeiro ano em que o véu se tornou obrigatório nas escolas. A gente não gostava muito de usar o véu, principalmente porque não entendia o motivo; e também porque antes disso, em 1979, a gente estudava numa escola francesa e laica, onde meninos e meninas ficavam juntos, e de repente, em 1980... [a]s escolas bilíngues [tiveram] que fechar as portas. [O professor dizia que] elas [eram] o símbolo do capitalismo mundial, da decadência. [Com isso,] [a] gente se viu de véu e separada dos amigos. E pronto!

Essa breve descrição revela a situação estabelecida no Irã após a Revolução Islâmica. A HQ retrata também os protestos que se sucederam contra o que a parcela mais urbana e escolarizada do país entendia como um retrocesso. Esses setores da sociedade confirmam a tese de que não existe corpo social homogêneo, ou seja, a influência ocidental dos tempos do Xá se manteve presente no país. A personagem de Persépolis cresceu em um lar com profundas referências da filosofia ocidental e é retratada lendo Marx e Descartes.


Trecho da HQ Persepolis. Retirado do site Blog das Letrinhas.

Contudo, o regime se impôs com um apoio significativo da população e construiu meios de sufocar as oposições e consolidar o poder em torno de um discurso de radical oposição aos valores ocidentais e de islamização de todos os setores da vida pública e privada de seus cidadãos.


Nesse mesmo sentido, a morte da garota curda Mahsa Amini, por usar o véu de forma inadequada, é o estopim de um contexto social mais amplo. Obviamente que a causa dos direitos femininos por si só já seria razão suficiente para uma insurgência nacional, porém a economia iraniana também está bastante desfavorável. Por exemplo, os embargos econômicos impostos pelos Estados Unidos após o fim do acordo nuclear, somados aos efeitos da pandemia de covid-19, impactaram muito negativamente o PIB iraniano, gerando menor capacidade de gastos com políticas sociais e investimentos em setores estratégicos. Com isso, houve aumento de desemprego e piora nas condições de vida.


Em razão disso, há uma grande dificuldade para nós, informados pelas mídias majoritariamente contrarias ao regime dos aiatolás, de entender o que acontece em países islâmicos de forma não enviesada. Os diferentes grupos políticos e projetos de país em disputa não são acessíveis, a fim de que se possa construir uma opinião mais lúcida sobre os fatos. Reconhecendo isso, Persépolis se torna uma fonte riquíssima de conhecimento sobre a vida no Irã e permite com que se conheça mais de perto esse povo tão diverso que não pode ser emoldurado em torno de uma caricatura do atraso fundamentalista.



Texto escrito por Marco Aurélio Cardoso Moura

Professor de Língua Portuguesa no Ensino Médio; formado em Letras pela USP e especialista em Juventude no Mundo contemporâneo pela FAJE-BH. Hoje é mestrando em Educação pela FE-USP e colunista do “Zero Águia”.

 

Bibliografia


Satrapi, Mariane. Persépolis. São Paulo, Cia dos Quadrinhos, 2000

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